Duas memórias generosas me levam de volta à minha adolescência, uma delas é das tardes que eu passava na companhia de amigos ouvindo música e conversando. Na adolescência me aproximei de alguns amigos em especial. Eram os que gostaram de música e de assuntos e especulações sobre autores, cantores de banda, escritores. Fofocas do mundo da música dividiam espaço com assuntos sobre nós mesmos. E nos momentos de conversas pouco profundas, os calçados dos outros eram meu assunto favorito. Modelos e cores de tênis e botas parecidos com os cantores de banda e também os que eu via nos pés dos meus companheiros de conversa. Eu queria ter calçados como os dos artistas que eu julgava descolados.Por mais que eu me esforce, não encontro em minhas memórias qualquer sonho daquela época que não girasse em torno de trabalhar com música. Não importava o que fosse, eu via na música meu lugar. Eu tinha vontade de compor, mas, acreditando no que meus pais diziam, achei que a arte não era algo que permitisse ter uma profissão. Mas sempre escrevi, mesmo sem me dar conta que isto seria meu oficio. Como eu nunca tive um sonho, daqueles SONHOS que alguns costumam ter, a mistura dos eventos da minha juventude me levou a trabalhar na universidade. E acabou que não me tornei uma compositora. Mas a escrita nunca saiu de mim e depois se tantas idas e vindas, é dela que vivo. Hoje estou aqui em casa, num Domingo preguiçoso, dividindo o espaço do apartamento com os adolescentes e seus calçados. Eles passaram o dia todo conversando sem parar. Nada de planos, nada de sonhos. Estão rindo numa tarde de Domingo. Alegres, felizes. Falando de viagens impossíveis, de música, do paraíso. Mais de uma vez falaram do paraíso. Entre crenças e ceticismos, dão gargalhadas duvidando ou se divertindo uns com as histórias dos outros. Deixei um bolo na mesa. Me deu vontade de dizer “tenham sonhos e vão atrás deles”. Não disse. Pensei: os sonhos nos conduzem mesmo sem a gente se dar conta. Mas me dei conta, logo em seguida, que foi por um sonho quase despercebido que cheguei aqui. Senti. Chequei o calendário. Hoje faz um ano exatamente que cheguei de mudança. E não poderia ter clima melhor para marcar esta data.