Esperando no cartório, numa daquelas filas que só da pra encarar sentada, treino todos os exercícios possíveis de respiração anti irritação na expectativa de que minha memória encontre alguma história passada sobre filas e esperas, daquelas que a gente só rí depois de muito tempo passado o estresse de estar num cartório de registros. Mexo no álbum de fotos, vejo esta em que não estou irritada. Nunca fui de esperar sem me irritar. Estes lugares que deixam a gente esperando, sem nos dar informação, sem nos esclarecer o sentido da demora, são um ambiente de contaminação da especulação e da futrica. Os atendentes rostos congelados num humor sombrio. Carimbam, assinam, copiam, dobram, rasgam, grampeiam, chamam. Carimbam, assinam, copiam, dobram, rasgam, grampeiam, chamam. Carimbam, assinam, copiam, dobram, rasgam, grampeiam, chamam. Quando nos chamam ao guichê, a conversa entre as atendentes nunca tem qualquer ligação com os temas do cartório, como preço do itbi, valores de registro, prazos. Elas falam sobre o ponto da carne no restaurante da esquina, os corpos das irmãs sertanejas, a ressaca de sábado, o culto de domingo. Do lado de lá dos vidros que delimitam quem manda no ritmo do atendimento e quem obedece, não existe ansiedade da espera nem falta de informação. As pessoas riem, se divertem, conversam sobre amenidades. Seus semblantes só se alteram quando precisam trocar olhares e informações com quem esta aqui, do lado de fora do vidro. O contador de senhas não anda enquanto o relógio se arrasta e eu ainda não consegui encontrar nenhuma memória que me ponha numa condição confortável neste lugar e neste momento. Me lembrei de meu sobrinho Raul, que na pré escola, ao ser obrigado a deitar dentro de uma cabaninha de tecido com mais dois colegas para dormir depois do almoço. Raivoso, repetia às professoras que não sabia dormir depois do almoço. Disseram a ele que se não quisesse dormir, que aprendesse a esperar deitado até que todos acordassem. Ele aguentou por alguns dias. Na segunda semana levantou escondido, pegou um pedaço de bambu e saiu correndo com a arma na mão, derrubando todas as cabaninhas onde os colegas dormiam. É como esperar o momento certo, quando vencemos o limite do bom senso e caímos na perdição. Quero um bambu. Agora.
A perdição de Raul é a minha perdição
