A palavra sofá, que aparecia no nome do meu primeiro filhote de blog, era pra ser apenas uma metáfora. Mas que posso eu fazer se, novamente, ele aparece como protagonista?
Pelos idos dos anos de 1950- esta é uma memória contada e não vivida por mim- meu pai teve experiência inusitada.
Bom… inusitada para nós, simples mortais, mas não para um Quarentei que, em essência, é um ser excêntrico, desviado da curva. Porque um Quarentei não pode ser classificado dentro da linha da normalidade, mas no limiar de uma loucura surreal. No caso deste Quarentei, o Pedro Carlos, esta é uma história que passa dentro na normalidade.
Sua mãe, minha vó Izolina cumpria diariamente o hábito de ouvir a Ave Maria às dezoito na rádio e, depois de desculpados os pecados do dia e concluída a lista de bênçãos para o amanhã, pegava seu livro de incontáveis páginas amareladas e partia para a calçada, ler um clássico de novela para a vizinhança que esperava ansiosa por mais um capítulo das novidades além Riversul.
Por aí já era um capítulo inusitado da vida desta família que, por desventura, só vim a conhecer vinte e quatro anos depois. Não pelo fato de minha avó ler novelas para a vizinhança, mas porque Riversul é uma cidade abreviada, simplicada pelo tempo, pela preguiça que fez com que seu nome, exigindo fôlego demais para ser pronunciado, começou com Ribeirão Vermelho do Sul e teve como carma um simples, curto e inexplicável Riversul.
Mas minha avó não era apenas a mãe de cinco filhos (depois quatro, porque um morreu de sarampo ainda novinho); mas uma mãe insegura, medrosa de cães e de loucos. Mas ela lia novelas para os vizinhos às dezoito e cinco da tarde.E gostava de desmontar a máquina de costura para passar o tempo enquanto meu avô vendia botões e tecidos no andar de baixo.
Não dava muita bola para as filhas mais velhas, mas mimava o mais novo, meu pai, que apesar da voz grossa recebeu o fraternal apelido de Neném. “- Zezé!!! O coração do frango é do Neném!!!” “-Dáda, corta o bife do Neném!!! “-Janice!! Abotoa a blusa do Neném!!!”.
Pudera, entre a mais velha e o mais novo eram vinte dois anos de diferença… A tia Dáda com trinta e meu pai com oito anos. só poderia dar errado…
Mas o Neném foi crescendo, embora a mãe não quisesse perceber. Aos 8 anos de idade já saía com os amiguinhos para nadar no rio, embora antes precisasse da mãe para tirar o camisolão de algodão, que ele insistia em não aprender a desabotoar.
O vínculo com o filho era inacreditavelmente forte. Um dia, chegando na casa da vizinha com a Zezé e o Neném, entraram no jardim e deram de cara com um cão bravio. Na hora do desespero, e contando com o fato de ter pânico de cães, minha avó não pensou duas vezes: jogou o Neném pra fora da porteira, pegou a Zezé nos braços e a colocou entre ela e o cão. “Eu salvo o Neném, mas como ele não vive sem mim, preciso estar viva para desabotoar o camisolão… Como pode o coitadinho ir pra escola de camisola??”, deve ter pensado…
Zezé resolveu, mas ainda assim não conseguiu o direito de primeira na listados preferidos.
Tempos depois, numa noite de insuportável calor, Neném acordou suado e correu pra cozinha tomar um gole de água morna da moringa. Enquanto voltava pro quarto teve a nítida impressão de ter visto uma cobra no sofá da sala. Deu preguiça de voltar pra conferir, ainda mais porque ele, Neném que era, só poderia estar tendo alucinações por causa do sono e da sede; mas chegou na cama e pensou que aquela peçonhenta poderia tê-lo como vítima, caso fosse de verdade. Tomou coragem, esqueceu o apelido carinhoso e voltou pra sala. Ela estava lá, real, brilhante, peçonhenta.
Num único suspiro mais forte minha vó e meu vô estavam na sala.
O que fazer??!!
Pau!! Tiro!! Fogo!!
Minha vó correu pro quintal e pegou a vassoura mais reforçada. Meu vô foi na certeira, direto na “nuca” da cobra, que dobrou, mas correu para entre os assentos e sumiu de vista.
Os três permaneceram petrificados, sem fala, com calor e sono. Mas sabiam que voltar para a cama não era uma alternativa.
Meu vô foi até o canto da sala e pegou a espingarda. tinha de ser no primeiro tiro, ou a vizinhança acordaria e eles não poderiam voltar pra cama, mesmo sabendo que dormir a esta altura já seria uma vitória. Shoot!!!! Saiu o tiro. Na mira!!! Direto na cobra. Ouviram o barulho da bicha se mexendo. Teria acertado a cabeça? Ou qualquer parte do resto, que não serviria pra morte??
Tá bem…. o sono já era. A meta agora era se certificar de que aquele bicho venenoso estava morto. Mas mexer no sofá não era alternativa válida. Afinal, numa família de cagões a coragem não passava de burrice.
O Neném, que trouxe a novidade, continuava num canto da sala, com seu camisolão de botões e já com sede novamente.Queria voltar pra cozinha pegar mais água, mas não passaria pelo sofá nem por decreto. Mentalizou, mentalizou até que a Dona Izolina tomou a iniciativa: “Vou ferver uma panela de água pra jogar neste bicho!”
Todos para a cozinha, com passo acelerado perto do sofá.
Enquanto acendia o fogão à lenha o Neném virava em volta e o Seu Pedro, meu vô, observava atentamente o sofá, pra ver se a peçonhenta não saía, afinal tinha a Zezé no quarto, que gritava querendo saber o que se passava, sem ninguém atualizá-la.
Com o sol já nascendo a água ferveu. A quatro mãos minha vó e meu vô carregaram a panela e jogaram toda a água fervente por todos os cantos. O meu pai, Neném que era, assistia a tudo de cima da mesa.
Nada de cobra. Empurrões, chutes, cutucadas no sofá e …. nada.
Quando o sono começou a voltar, decidiram carregar o sofá para o quintal. O Neném teve de fazer parte da equipe, mesmo com aquele camisolão que atrapalhava seus passos.
Exaustos de sono, com o sofá devidamente seguro do lado de fora, voltaram para a casa, vedaram a porta e foram pra cama.
Depois de duas horas sem dormir, levantaram pro café da manhã. O sol já estava alto. A Zezé, única animada com a curiosidade, foi direto para o quintal. Meio sem entender o que se passava, deu de cara com o sofá bordô, todo encharcado, com um furo de tiro de espingarda e uma cobra quebrada na nuca, mortinha, dormindo o sono que ninguém dormiu naquela noite.
Quem mata a cobra…
