Eis minha mãe, ao telefone comigo. Estamos sem nos ver há 16 meses. Já passamos mais tempo que isto sem nos encontrar. Uns meses não são tanta coisa para quem saiu da casa dos pais há 28 anos. Mas a distância, hoje, tem um sabor amargo. A pandemia me impediu de ir até ela quando eu quis. E eu quis mais de uma vez. Nestes anos todos aprendemos a nos falar ao telefone, mas desde que a demência começou a tirar dela o prazer das memórias, as conversas são cada vez mais difíceis e repetitivas. Vem daí o amargo- da dificuldade de conversas que permitam o riso ao final de um assunto qualquer. Os assuntos da minha mãe hoje são todos inconclusivos. Eles se emendam com outros. E nunca tratam de sonhos, desejos, levezas… Ela está sempre querendo ir a algum lugar que chama de casa, como se a parte que lhe falta estivesse numa morada que não existe além da sua vontade de que exista. Minha mãe nunca teve parada. Trabalhou o máximo que pôde para ter independência e liberdade. Pagava faxineira, cozinheira, babá para não ter que se dedicar à casa nem às crianças. Para ela nada poderia ser mais sofrido que tratar de questões domésticas. Mas nos deu uma vida segura, uma casa com eterno cheiro de comida boa, camas sempre limpas e fofinhas, discos e livros que ela e meu pai sempre gostaram, conversas de sonhos e histórias de vencedores. E sempre repetia que os filhos deveriam morar longe para que ela pudesse ir visitá-los só pra poder viajar. A única coisa que ela sempre temeu foi a morte. Inexplicavelmente temia o inexorável. Com a demência ela deixou de sair de casa, mas passa parte do dia à procura dos pais, das irmãs ou do marido para que alguém a leve para casa. Não se encontra onde está. Fala dos mortos como se estivessem vivos. Tem uma eterna angústia de não encontrar as pessoas que já morreram e ela julga estarem vivas. Mas não pensa mais na própria morte. Está fazendo um tratamento de câncer, em meio a uma pandemia e, não tendo consciência, não teme. A vida é ironia. Por mais triste que pareça a demência, hoje olho para minha mãe e penso: é o que a tem salvado do sofrimento que deve ser o de temer a própria morte.
Assuntos inconclusivos
