Sempre que vejo a gota do café pousando no meu copo, penso porquê não me lembro de quando nem como comecei a tomar café. Não sei quantos anos eu tinha nem sei se estava sozinha. Café, para mim, é bebida que não combina com criança; mas devo ter bebido pela primeira vez ainda muito novinha, já que não me lembro. Me recordo de beber café nos tempos de universidade, da minha faculdade de Física lá em São Carlos- meu café amargo, antes dos tempos em que tomar café sem adoçar virou moda gourmet. Não bebo em xícara porque sinto a...
Das coisas que a vida nos reserva
Sonhei, esta noite, com bala de coco. Não uma bala de coco qualquer. Sonhei com as que vêm embaladas em papéis de seda coloridos-aqueles papéis com ráfias- e que, organizadas em torres, se transformavam numa alegoria que em dia de aniversário roubavam o protagonismo do bolo na mesa dos parabéns. Nos últimos dias estas balas me acompanharam em pensamento, me inundaram de memórias e fantasias. Passeei pelas ruas da minha terra natal, com meus oito ou nove anos de idade, sentada no banco de passageiros do carro da minha tia Edina, indo buscar a encomenda de balas para o aniversário...
O Flecha viveu uma vida boa
Ontem nos despedimos do nosso cão. Foi um Domingo tão triste. Quando o Flecha entrou para a família eu não tinha nem 30 anos, não morava no apê que moro hoje e sequer sonhava que um dia me tornaria mãe. Quando tomamos a decisão de ter um cachorro enorme dentro de casa, não sabíamos o preço da ração; nem que gostaríamos com hospedagem de férias para ele. Eu nem imaginava que um cachorro pudesse amar tanto os humanos e odiar tantos outros cães. O Flecha sempre foi um cão festivo à primeira vista, barulhento, folgado, mimado, espaçoso e um exímio...
As linhas do Gabo
Ler não é um ato único, que se traduza de igual maneira por todos que lêem. Dar significado e sentido à sucessão de letras que se unem em palavras que se unem em frases, parágrafos longos, contos, crônicas, livros de entretenimento e a literatura tão minuciosamente costurada em críticas sociais ou memórias históricas. Há quase três décadas, enquanto cursava ciências sociais, me dei conta que ler ia além do meu costume de ter um livro de cabeceira que eu folheava e me encantava antes de dormir. Descobri que há livros que a gente estuda sentado numa mesa, fazendo anotações e...
Uma troca de calmas
Quando minha sobrinha Isabela nasceu, minha irmã teve uma espécie de crise de ansiedade no quarto do hospital e começou a se debater na cama. Minha tia imediatamente começou a fazer carinho no cabelo dela para que acalmasse. Pediu que eu pegasse uma escova de cabelos na bolsa e pôs-se a pentear os cabelos da minha irmã até que ela caísse no sono. Algo que não demorou a acontecer. Nunca entendi bem porque minha tia levava uma escova de cabelos na bolsa. Não uso bolsa e costumo sair de casa munida apenas de mim. Costumava levar um documento e dinheiro...
Assuntos inconclusivos
Eis minha mãe, ao telefone comigo. Estamos sem nos ver há 16 meses. Já passamos mais tempo que isto sem nos encontrar. Uns meses não são tanta coisa para quem saiu da casa dos pais há 28 anos. Mas a distância, hoje, tem um sabor amargo. A pandemia me impediu de ir até ela quando eu quis. E eu quis mais de uma vez. Nestes anos todos aprendemos a nos falar ao telefone, mas desde que a demência começou a tirar dela o prazer das memórias, as conversas são cada vez mais difíceis e repetitivas. Vem daí o amargo- da...
Rua Aribau
Ontem foi um Domingo vazio e preguiçoso. Deitada, lendo um livro chamado Nada, passei a tarde entre cochilos e bocejos, vagando entre memórias. A protagonista do livro vive na rua Aribau, em Barcelona. Então me lembrei que num livro que li de outra escritora espanhola, havia passagens pela rua Aribau. Desconfio que o livro se chame A Praça do Diamante. Nunca fui de guardar nomes ou datas ou lugares. Quando leio- e o mesmo acontece quando estudo- minha memória é de sensações e afetos. Anos- ou mesmo meses- depois, não saberei onde aconteceram as histórias ou em qual momento histórico;...
Classificando sentimentos
Estamos habituados a ver nossa personalidade e nossos sentimentos pela superfície. Um bom exercício para conhecer melhor nossos sentimentos, é tentar entender de onde vieram e prestar atenção na maneira como o reagimos a eles. Muitas vezes julgamos que somos os adjetivos com os quais os outros nos qualificam. Mas havemos de ser mais que isto, não é? Muito além daquilo que está na superfície, no visível da nossa personalidade, nós somos as elaborações que nos levam a sentir determinadas coisas. E somos também a maneira como reagimos a elas. Assim como o amor, que falei dele aqui dias atrás,...
Frustração e culpa
De todas as coisas que deram errado na minha vida, me culpei por todas. Fui sempre além da frustração. Na verdade, sempre pulei a parte da frustração, que já vinha em forma de culpa. Depois que entendi que nada depende só de mim, me culpei por me culpar. Mas aí eu me pergunto – e lhes pergunto: de onde é que esta culpa surge e por onde ela consegue entrar na nossa (in)consciência a ponto de fazer parte dos nossos sonhos, decisões, escolhas? Se acredito que a vida é partilha – e eu acredito, não há porque acreditar que tudo...
Onde reside o amor
Onde reside o amor? Algo que sempre questiono (e em tempos de pandemia ficou mais difícil de entender) é onde o amor reside em nós. Se o amor, mais que um substantivo é um verbo, ele só se faz num ato? Há trocas no amor. Mas não podemos- se realmente amamos- julgar que deveremos ter de volta aquilo que damos. Ou será que é inútil pensar em tudo isto? E o amor, então, não tem nada a ver com o outro, mas sim apenas com nós mesmos? E aí vem outra pergunta… E o amor próprio? Ah… este tem que...