Quem puder, se irrita comigo. A historia é a seguinte: ontem, ao ver a noticia da filha que, mancomunada com mais parentes, roubou a própria mãe ao subtrair de sua genitora telas caríssimas, fiquei pensativa. A imprensa chama sempre um especialista para validar a relevância ou não dos crimes. Principalmente quando o assunto são pessoas privilegiadas. E então aparece o especialista e afirma que o valor dado a uma das telas é superestimado. No seu argumento, o tal especialista reforça, quase com desdém, que a tela O Sono, de Tarcila do Amaral, não vale os 300 milhões como vem sendo noticiado. Pondera numa avaliação de 75 milhões. SETENTA E CINCO MILHÕES. Até onde chega minha capacidade de percepção, 75 milhões e 300 milhões não fazem diferença. Vejo estes valores numa mesma condição, a de que é um montante que remete a investimentos estatais e não deveria ser de uma única pessoa que pode usá-lo para comprar uma tela. Uma única tela seja ela de quem for, vamos combinar, não deveria nem poderia valer tanto. Mas estamos falando do mundo das artes, um mundo de gente muito muito rica do qual não faço parte e sequer consigo compreender. Quando eu olho para esta tela apenas uma coisa me vem à cabeça. Penso que é uma abstração das coxas de frango que a Tarcila comeu na hora do desgosto por descobrir que o Osvald a estava traindo com a Pagú. Imagino Tarcila na beira da praia, com chapéu clochê, uma taça de proseco, comendo as coxas de frango fritas. No começo usando um guardanapo de linho para segurar a pontinha do osso; mas depois da terceira taça tudo se complica. A gordura da fritura escorrendo pelo antebraço e o vento insistindo em levar o guardanapo, Tarcila começa a enfileirar as coxas de frango sobre a mesa enquanto pensa numa vingança. Depois de comer tudo, já embriagada e com sono, tenta levantar, desequilibra, se segura no braço da cadeira e vê, sob outra perspectiva, os ossos de coxa comida organizados sobre a mesa. A artista tem, então, uma introspecção típica dos ébrios que sofrem por amor: pensa em registrar seu sofrimento. E o registra, reproduzindo o momento como vemos na tela O Sono.
Advertência aos que pensaram em adquirir a tela: o texto contém ironia.
Tarcila e eu
