Viver, lembrar, fluir

Viver, lembrar, fluir
Hoje, quando acordei, procurei um CD. Quando acordo, não é qualquer música que me vem à cabeça. Nunca é. Nos tempos de monotonia, às vezes, sim. Mas sempre, na maior parte das vezes, não.
E hoje, quando acordei, o Drexler estava pulsando, só pra mim, lá bem dentro da minha cabeça. Procurei o CD, pus no som, e a música saiu da cabeça e tomou conta de tudo.
Os meus momentos cabem num play, e se revelam quando escolho entre o que vale e o que não vale a pena lembrar. Hoje, fútil, leve e fluida, minha lembrança me levou à adolescência, naquele tempo em que nada era escolha e tudo era consequência. E depois passeou por ai…
Com tempo livre, um sofázão só meu, a música, o vento, um dia com nada pra fazer com hora marcada . Hoje foi um dia perfeito para flutuar nas lembranças da adolescência e em todas as outras que desdobraram dela, fluindo à toda como um Domingo.
Não sei como foi a adolescência de vocês. Mas como amei, como me inundei de amigos, bilhetes, risadas, choros, carnavais, horas e horas de sala de televisão e livros no sofá. O Drexler, que hoje me inspirou as lembranças, só veio bem depois, quando eu já morava aqui em Vix, nada a ver com a minha adolescência que, assumo, aconteceu faz muito tempo. Mas eu adoro uma música dele que se chama Transporte: “Se trata de un leve pulsar que se abre camino hacia tí, cruzando las estaciones, constelaciones, los momentos. Digo que esta vida es llevadera sólo porque sientes tú lo que yo siento.”
Isto é o que chamo de lembrança, um transporte. Não que eu viva delas, das lembranças que me transportam no tempo láá longe. Sempre tenho uma lembrança amanhã de algo que vivi hoje. A gente  costuma lembrar sempre. De tudo. De ontem e de lá longe.
O que pode ser diferente um pouco, entre cada um de nós, é a maneira como mexemos com estas lembranças. Como diria o Riobaldo, de quem já falei aqui antes, “contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, princípio, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez seja esse o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”
Tempo e espaço se recortam à medida das nossas lembranças. Mas tem uma coisa que é o alimento da lembrança e está em todos os momentos e lugares: o amor. O amor eterno, o amor perdido, o amor roubado, o amor de pouco, de muito. Tem amor de todo tipo e, que delícia, para todos os gostos e corações. Quanto mais amores, mais lembranças. Já perceberam? Por isto temos tantas lembranças da adolescência, porque quando adolescentes amamos tudo, desamamos um monte de coisas. Tudo junto e tudo muito. E as lembranças trazem isto. Lembrar é quase um grito de “vem comigo”. Datas, momentos, pessoas.
Acumular lembranças é acumular amores. E, convenhamos, isto é bom demais. Eu, pelo menos, adoro.
Lembro da Copa de 82. Eu, em cima de uma Pampa, com a Priscila, a Juliana e um monte de crianças. Para mim foi como se o Brasil tivesse ganho. A Seleção perdeu a Copa, mas ganhou meu coração. Chorei por ela nas Copas seguintes, de alegria e de tristeza. E amo futebol porque guardo em mim aquela alegria em cima do carro (coisa que hoje quase ninguém mais faz porque não pode, mas eu me lembro que já fizemos). Lembro de quando conheci a Graciana (minha cunhada) lá em Floripa, de vestido azul e um cabelo enrolado maravilhoso. A única coisa que eu sabia dela, até então, é que ela “era grande”, porque tinha sido a única informação o meu cunhado Pedro (O Liso) tinha passado pro Gandhi, fugindo de qualquer conversa pré-conhecimento. Não lembro em que ano foi, nem lembro se estava ventando ou não, mas lembro que achei que ela não era grande e que comeu o mesmo sorvete que o meu (deve ter sido chocolate). Só depois fui entender que ela é grande, grande por dentro, intensa, ELA- e é isso que faz o meu amor por ela. E olha que nem gosto tanto mais de sorvete de chocolate. O amor pelo chocolate continua, mas eu prefiro os de fruta, embora me lembre do meu eterno amor pelo chocolate.
Me lembro do dia em que joguei uma panela da minha mãe no terreno baldio do lado de casa. Foi uma história de amor partido- o amor pelo caramelo. Fui fazer caramelo e ele queimou na panela. No momento de pânico, assumindo meu erro de cálculo (fogo+tempo no fogo), resolvi dar fim na panela, que ficou no terreno por muito tempo, tempo suficiente para minha mãe procurar a panela por toda a vizinhança. Uma vez por semana essa história aparecia na hora do almoço e eu me contorcia por dentro, num silêncio cortante. O sofrimento durou até que o dono do terreno resolveu fazer uma limpeza. Conheci um amor de mãe diferente no dia da descoberta. Porque sofri por muito tempo de medo de apanhar, mas acabei sendo zoada por muito tempo (leia-se até hoje). Amo o caramelo, me amo e amo a minha mãe. E convivo deliciosamente com os três até hoje.
Me lembro do dia em que conheci a Gaby, minha vizinha de loja. Um cajal preto fugindo no canto de fora dos olhos. Olhos lindos. Olhos de verdade, de quem gosta de verdades. Não lembro o dia, não lembro a hora, mas me lembro dos olhos. Olhos que, com o tempo, mostraram que eram de verdade e que ela é verdadeira como os olhos dizem. De verdade como os pratos orgânicos que ela e Sú nos servem e que, como agora, me trazem lembranças de momentos bons naquele canto de esquina que tem borboletas e boas energias.
Lembrar é isto. É tanto desatino nas lembranças, que os amores passeiam.
Lembro quando vi o Gandhi pela primeira vez na vida, sentado no ponto de ônibus da praça da Catedral de São Carlos. Cabelinho de cogumelo shimeji, calça azul com estampas, óculos quase redondos, camiseta da Materiais. Ele não pegaria o mesmo ônibus que eu porque eu ia para a Área Sul, das Humanas. Meu coração pulsou, me lembro bem disso. Me preparei um tempo pensando no momento em que nos conheceríamos de verdade, o que só aconteceu num dia de eclipse, no quintal da minha república, quando eu falei pra ele pra ler Fernão Capelo Gaivota, que “contava a história de uma andorinha e que era super legal” (Ai ai que eu me faço morrer de vergonha: ler este livro em que o protagonista gaivota era uma andorinha…). O amor ficou, na lembrança e na vida.
Lembro de quando dei meu primeiro beijo na vida. Tinha passado seis longos anos de aparelho nos dentes e todo mundo dizia que, com aparelho, meus lábios ficariam presos nos do meu “par”. só fui dar o primeiro beijo depois que tirei o aparelho, mas o meu “par” tinha um enorme e brilhante aparelho nos dentes. Não me lembro de quaisquer detalhes além do alívio de não ter ficado presa nele. Ufa…
O sentimento de alívio é uma coisa que guardamos em forma de amor. É um amor por aprender as coisas, porque quanto mais apertos passamos na vida, mais coisas aprendemos. Não importa o tipo de aperto, pode ser de grana, de dor de barriga, de ser parado plea polícia quando a pessoa que está do seu lado está com 2 gr de maconha no bolso, de colar na prova. Aperto é aperto e, na hora do aperto, a angústia é a mesma, não importa o contexto. E a gente aprende que a angústia também é uma forma de lembrança de amor, porque sempre temos angústia quando temos medo de perder o amor de alguém- dos pais, do namorado, de nós mesmos.
O amor vem em várias formas e, passado o tempo, traz as lembranças em suas diversas facetas. O que vale é não esquecer. Me corrôo quando escuto alguém dizendo que o terapeuta falou para “esquecer o que passou”. Esquecer é a pior coisa que podemos fazer por nós mesmos. Lembrar é afirmar-se. Melhores as boas, engraçadas e improváveis lembranças. Melhores, mas não as únicas. Navegando ou naufragando, lembrar é sempre bom.  Ainda mais porque aquilo que lembramos, lá no íntimo, é aquilo pelo que somos lembrados.
A questão não é pensar demais, mas lembrar sempre, lembrar sem objetivo, lembrar. A vida da gente se dilui se não lembramos de como foi que se passou. Não que o melhor seja ser sólido, não é isso. O melhor é fluir. E lembrar é fluir.